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O MAL DITO POR VINÍCIUS CARVALHO

Fransérgio Araújo celebra 50 anos com “O Mal Dito” seu solo em constante transformação

Em “Cantos de Maldoror” (1868) o poeta uruguaio Isidore Ducasse (1846-1870) afirma que “A grande família universal é uma utopia digna das mais medíocres das lógicas”. Ao descobrir e redescobrir este autor o ator uberlandense Fransérgio Araújo encontrou a sua força motriz para lidar com a vivência em um mundo que se desdobra em diferentes maneiras de viver, em diferentes identidades. E inspirado nesta obra de Ducasse, Fransérgio criou “O Mal Dito”, que marcou seu retorno aos palcos depois de um hiato e agora o solo teatral que escolheu para marcar os seus 50 anos de vida, mais da metade deles dedicados ao fazer teatral. Neste domingo (24), ele faz uma apresentação única no Cineteatro Nininha Rocha, com entrada franca.

O roteiro traz um homem atormentado pela própria existência, questionando a razão da vida e revoltado contra o próprio homem e o que ele se tornou, um ser extremamente cruel. A chave parece estar na revolta e ele tentará sair desse desespero fugindo da crucificação moral e das leis da providência. Nesta apresentação Fransérgio contará com a participação especial da atriz Fabíola Karnas (SP).

Em entrevista exclusiva ao Uberground, o artista conta como essa obra foi um divisor de águas em sua carreira e no desenvolvimento do seu Teatro Selvagem. O ator tem uma forte ligação com a música, sua militância é visceral, como contou em entrevista à esta repórter, veiculada pelo Diário de Uberlândia, em 2019. Depois de formado em Produção Cultural, começou a rever alguns pontos da carreira em que percebeu com mais clareza como o mainstream tenta tirar do artista a possibilidade dele de existir enquanto uma linguagem não formal. “Três reportagens especialmente me fizeram ver sou um estudo de caso do teatro e acredito que a melhor forma de contar isso é por meio de um livro”. Está dado o spoiler.

SERVIÇO

O QUE: Espetáculo “O Mal Dito”
QUEM: Fransérgio Araújo
QUANDO: domingo (24/09)
HORÁRIO: 20h
LOCAL: Cineteatro Nininha Rocha no Centro Municipal de Cultura (Antigo Fórum)
ENTRADA FRANCA: retirada de ingressos pelo Sympla
CLASSIFICAÇÃO: 16 anos
MAIS INFORMAÇÕES: @fransergioaraujo

ENTREVISTA

UBERGROUND: Uma década se passou desde o seu retorno aos palcos, após aquele hiato sobre o qual conversamos, como você enxerga seu trabalho hoje depois dessa retomada, na qual “O Mal Dito” tem um papel emblemático?

FRANSÉRGIO ARAÚJO: “O Mal Dito” continua sendo uma referência enquanto possibilidade de renascer enquanto homem no mundo em que a gente se encontra. Ele ainda traz essa catarse, a possibilidade de você morrer e renascer nesse aspecto do homem contra todas as vicissitudes que ele cria na terra e todas as injustiças praticadas por ele. “O Mal Dito” reforça que enquanto o homem não assume a sua maldade no mundo ele não pode transformar o seu meio, viver em paz. O autor afirma que o homem tem que acreditar nas coisas referentes à sua natureza, à sua velha estirpe. É uma surpresa pra mim enquanto ator redescobrir esse poeta tão poderoso.

Esse é um texto que você mais que aprecia, você trouxe para sua vida, para seu ser e falou em outras oportunidades que esta é uma experimentação de longa duração. Quem assistiu às primeiras sessões e vai assistir novamente perceberá essas nuances?

F.A.: Perceberá, com certeza. O ator carrega consigo uma técnica própria que amadurece junto com ele. Suas emoções e sentimentos são seus veículos de expressão e ele busca interpretar de uma maneira pulsante e latente e Ducasse tem isso no livro dele, o chamado verbo muscular, é uma força motriz para o trabalho do ator. E o ator que pesquisa, que busca, encontra a força motriz no texto para o que ele quer dizer. Podemos traduzir isso para esse momento do alavancamento das questões de identidade, das questões de gênero, das questões das possibilidades de se ver no mundo de diferentes maneiras. Isso está vindo à tona agora e o Ducasse falava isso já em 1860, ele já anunciava essa transformação. A experimentação continua porque o ator não deve se estagnar em uma única companhia, em um único trabalho, em um único aspecto da produção. Quando um trabalho se torna uma identidade de si próprio o ator conseguiu atingir a arte em cheio e a arte conseguiu devolver pra ele o seu aspecto criativo.

Como estão os trabalhos na sua companhia, a Ópera Ritual?

F.R.: A Cia. Ópera Ritual é uma companhia mutável como tem dentro do aspecto dos trabalhos que é a metamorfose que nos aplaca e como desenvolvo pesquisas as pessoas vão vivendo o meu trabalho. Hoje temos a participação no espetáculo da Fabíola Karnas, que veio especialmente de São Paulo. E hoje acho que ter parceira em cena, parceria de companhia é você dialogar com as aspirações que cada artista possui e é uma linguagem muito rica essa, de troca. Estou sempre buscando em São Paulo, Uberlândia, Campinas, São José dos Campos, sempre expandindo, abrindo outros encontros dentro da Cia. Ópera Cultural até mesmo fora do país porque a experimentação ela passa por diferentes artistas de diferentes lugares e uma companhia que se expande dessa maneira ela tem diversidade cultural no seu repertório. E com leis como Aldir Blanc e Paulo Gustavo, entre outras, pretendo estruturar trabalhos com elenco maior porque a força do teatro está nas companhias, nas pessoas, onde encontramos unidade em um coletivo lutando pelo próprio teatro. É isso que transforma e faz a companhia desenvolver mais esse teatro selvagem.

Recentemente o teatro brasileiro, a arte brasileira perdeu um dos seus maiores ícones, se não o maior, Zé Celso Martinez (1937-2023)… Você teve a oportunidade de conviver com ele no Oficina. O que pode destacar do legado dele?

F.A.: Os homens morrem e deixam legados que muitas vezes são absolvidos por serem medalhões da cultura, mas o seu aspecto humano muitas vezes não é tão potente como a sua criação. Às vezes são grandes homens, mas na vida comum são miseráveis. Acho que o Zé é um exemplo disso. Ele viveu dizendo que não deveria existir mito, não deveríamos mitificar a pessoa; na música, o Jim Morrison também era contra essa celebrização e apontava para a sua audiência dizendo ‘vocês estão mortos, vocês não precisam de celebridades’. Então, acho que o Zé e Antunes [Filho] e essa geração de diretores representam um movimento na arte brasileira que sustentaram com as suas posições essas identidades para atingir esses lugares de poder do homem branco, do homem que faz e cria, mas por trás disso acho que tem muita miserabilidade. Eu assisti esse homem na sua miserabilidade e na sua eloquência. Ele me ensinou mais com sua miserabilidade que na sua eloquência embora eu já tenha entrado no Oficina já como uma pessoa de teatro. O Zé Celso e o Oficina fazem parte de um movimento rico pelo qual muitos artistas passaram. Mas aí temos que discutir as condições de trabalho, a questão do êxodo cultural do artista que vai para trabalhar no eixo Rio-São Paulo, os abusos. Mas falarei tudo isso no meu livro do Teatro Selvagem e esse assunto Oficina estará nele. Aguardem.

Performar em Uberlândia ainda tem um gostinho especial para você?

F.A: Desde que sair de Uberlândia para ir atrás do meu sonho de ser um ator de teatro sempre voltei, é como se recebesse as bençãos da cidade onde eu nasci. Meu início no teatro infantil foi aqui, depois parti para o teatro amador, teatro na universidade, e minha atividade como produtor cultural me levou a procurar fazer contatos com artistas daqui, de outras décadas. Por isso é sempre uma possibilidade maior de se ver do lugar que você partiu do seu sonho para se proteger, para se projetar. Aqui é a terra de Grande Otelo e outros tantos atores que conheci aqui. Foram tantos encontros com artistas de tantos lugares e eu conheço a história desse lugar. Vou me apresentar no Centro Cultural Nininha Rocha, no prédio do antigo Fórum que tantas lembranças me traz. A cena de Uberlândia cresceu muito nos últimos anos e acredito no seu potencial.

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