Loading…
Série Gotas de Chaminé

Memórias do confinamento que ainda não terminou

Meu processo criativo passou por um restauro interior. Dentro e fora de mim, não conseguia me entender.

Helena Manzan
Helena Manza no Palazzo Baronale Giulio De Jorio Frisare (Autorretrato – Helena Manzan)

Há um ano a artista plástica brasileira Helena Manzan fez sua última visita ao Brasil. Ainda em fevereiro de 2020 deixava para trás uma Uberlândia prestes a entrar em um lockdown parcial causado pela pandemia desencadeada pela Covid-19. Mineira de Tupaciguara, egressa da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), a artista reside há mais de 20 anos na Itália. Ao desembarcar lá, deparou-se com um cenário devastador e naquele momento tudo mudou não só para ela, como para todas as nações do planeta. E os verdadeiros artistas, privados de executarem livremente suas criações, começaram um processo de olhar para dentro. Suas obras serão no futuro memórias de um confinamento que ainda não terminou.

“Foi uma mudança radical em todos os sentidos. Quando quando voltei do Brasil e encontrei de frente essa pandemia. As exposições e projetos marcados foram todos cancelados ou adiados, galerias e museus fecharam e todos os meus planos deixaram de existir”, recorda a artista, que concedeu entrevista de forma remota ao Uberground.

Se a situação parecia ruim, tudo ficou pior com a morte de Antonio Picariello, principal crítico e grande amigo da artista. Neste momento, Helena Manzan sentiu que o chão faltava sob seus pés. “Ele me orientou por mais de 15 anos e tínhamos projetos pela frente. Essa situação toda criou um bloqueio grande em mim”, disse Helena.

Com uma rotina repetitiva ela não conseguia entender como recomeçar a produzir com este cenário. Seu ateliê fica no Palazzo Baronale Giulio De Jorio Frisare, em Castel San Vicenzo, província de Isernia na região de Molise, onde ela dispõe de muito espaço, liberdade e belas paisagens para se inspirar. Durante a quarentena mais severa, com restrição de circulação em toda Itália, Helena Manzan improvisou um estúdio dentro de seu apartamento. “Se alguém saísse e não fosse prestador de serviço essencial a polícia mandava voltar. Isso me marco muito. Esse bloqueio, esse impedimento me causou muito sofrimento porque nós, seres humanos, gostamos de ser livres. Eu costumava acordar, sair, pensar no que e como iria fazer, tudo de acordo com muitas coisas que condicionam meu método de produção. Foi um longo processo de adaptação”.

Acostumada a compor peças de dimensões inclusive gigantescas, Helena Manzan fez um retorno ao básico. Tem trabalhado com pequenos formatos, como desenhos. Teve que rever toda a sua arte. “Leva um tempo pras coisas se condicionarem dentro de você”.

Você pode conhecer um pouco mais sobre Helena Manzan no nosso podcast.

Gratidão diante da perplexidade

O mundo está numa evolução de caos, de problemas

Até o momento da finalização deste texto, a Covid-19 já havia causado mais de 2 milhões de mortes em todo o mundo, segundo dados oficiais. E ainda há todo o impacto em todas as atividades econômicas e sociais. Os artistas, nesse momento de angústia e perdas para tanta gente, com a vacina já sendo uma realidade, aos poucos, vão se reerguendo com um sentimento de gratidão, por ainda conseguirem criar, mesmo diante de atitudes que geram perplexidade a qualquer cidadão consciente.

“Meu processo criativo passou por um restauro interior. Dentro e fora de mim, não conseguia me entender. Conversei com outros artistas para entender como era o mundo deles, o que acontecia com eles, se era igual ao que acontecia comigo. Então foi mesmo uma revolução interior muito grande, psíquica e prática”, conta Helena Manzan.

Na busca dessa nova proposta, ela começou por mudar sua técnica e passou a dar mais valor a coisas que fazia antes. Seu modo de criar, porém, não é único, acompanha seus movimentos, se transforma como o mundo ao nosso redor. Helena Manzan se permitiu um processo de autoanálise. “Acho que isso aconteceu com todo mundo, rever esse relacionamento com o silêncio, com o isolamento, com a falta de uma boa conversa. Entendi que eu deixei de me interessar pela arte informal e conceitual que até então era o meu forte. Arte conceito, da ideia do pensamento, isso perdeu o valor pra mim. Eu passei a dar valor à matéria. Voltei a dar valor à figuração simbólica. Preciso da figuração hoje pra expressar isso que aconteceu. Valorizando a natureza, muito mais do que eu valorizava. Fortaleceu-se a minha consciência da preservação do planeta. A pandemia mudou nosso modo de nos locomovermos, o modo de expor, de fazer exposições, de se mostrar ao mercado”.

Esse mercado da arte mudou e o artista tem que acompanhar. Helena Manzan não acredita que tudo vá mudar rapidamente, mesmo com a vacina. Para ela, a vacina traz esperança, mas ela sozinha não vai dar conta de consertar tudo que o novo coronavírus escancarou diante de nós enquanto sociedade. “Tomar consciência e saber viver nesse ‘novo’ mundo será nosso ponto de força. Tudo que eu li, que eu vi, que eu senti; tudo que eu analisei dentro de  mim me leva a pensar nisso. É preciso saber se adaptar, teremos que lutar por um mundo mais sustentável, um mundo que tá aí muito  poluído e essa poluição trará outros vírus, outras doenças, outras coisas. A vacina só não será uma, um término para esse problema porque o mundo está numa evolução de caos, de problemas”.

Momento para criar

Segundo Helena Manzan, seus próximos trabalhos serão uma mistura de gratidão, pelo planeta e pelo mundo em que vive. “Como artista tenho um modo sensível de ver esse mundo e as pessoas que estão nele. Tirei de tudo que vivemos até agora um ensinamento: devemos ser muito gratos pela nossa vida, pela beleza do nosso mundo, com toda a natureza ao redor. Não podemos continuar aqui vivendo como nos outros séculos como se vivêssemos na Terra sem nenhuma consciência de que devemos preservá-la de que tudo um dia poderia acabar. A natureza e todas as suas formas são esses arquétipos que devem ser respeitados. A pandemia me ensinou muito isso”.

Muitas galerias e museu já dispõem de exposições virtuais e visitas virtuais. Porém, este não é o foco de Helena Manzan no momento. Por mais que haja essa imposição, ainda há galerias que prezam pela arte pelo contato com a obra, o estar perto, a contemplação pura e simples. “Alguns curadores consideram que pela tela de um computador ou de um smartphone não é possível se perceber a profundidade de uma obra, por isso, muitas delas não farão mostras virtuais. Então eu tirei esse momento mesmo para a introspecção, para a criação, para quando puder voltar fisicamente para as galerias”.

Um dos adiamentos que Helena Manzan teve neste início de ano foi de sua mostra no Rio de Janeiro, que, se tudo correr bem, acontecerá em novembro. “Isso não é ainda certo. Temos que esperar um pouco e ver o que virá, como com outras exposições aqui na Europa. Nes1t1e momento, momento estou só produzindo. Quero, por meio da minha arte, contar esse momento para deixar pros meus netos. Afinal, são meus pensamentos desse mundo, que vivo hoje como artista. Tudo será registrado nessas minhas obras. Agora mesmo estou mais interessada em me entender e realizar a minha arte do que mostrá-la”.

Fogo, água, neve, cinzas… e o fim se perde no começo, ou vice-versa

Há algumas semanas Helena Manzan voltou ao seu ateliê no Palazzo Baronale Giulio De Jorio Frisare. Atendendo a (insistentes) pedidos do Uberground, ela concordou em mostrar algumas peças de uma série que, por enquanto, chamaremos aqui de “Goteiras de Chaminé” (imagens acima de Helena Manzan).

Enquanto via as imagens e conversava com a artista, a repórter se lembra de uma obra de arte, mas em forma de canção, de outro artista brasileiro também descendente de italianos, Renato Manfredini Júnior (1960-1996), ou Renato Russo. O álbum homônimo na Legião Urbana lançado em 1985 termina com a música “Por enquanto” que traz o primeiro verso: “Mudaram as estações/ Nada mudou / Mas eu sei que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão diferente”.

Entre um inverno e outro tanta coisa mudou na vida de tanta gente, e muitas dessas mudanças foram duramente impostas. Nesse momento a canção de Renato Russo parece dialogar com essa obra/não obra de Helena Manzan. “A minha arte sempre foi muito ao acaso. A minha criação vem muito espontânea, vem das coisas que acontecem em volta de mim”.

E foi isso que ela retratou observando uma estufa à lenha. A fumaça sobe por um tubo que do lado externo é uma chaminé. Ali, a neve depositada ao derreter volta para o tubo, passa pelas cinzas ali depositadas. “Os resíduos de cinzas deixados pelas fumaças torna-se uma goteira de cor amarelada que usei nas obras.. Sou muito atuante nas coisas do cotidiano então quando comecei essa série afim de aproveitar a possibilidade do meu viver cotidiano aqui em montanha onde o inverno traz chuvas intensas caracterizando a chegada da neve. A dissolução da neve em contato com as chaminés que aquecem as pessoas reporta dentro da casa aquela água com cinzas queimadas. Achei interessante resgatar isso. Essa energia de retorno é o encontro, é a pureza da água da neve em transformação assim com essa nova energia em contato com essa cinza já queimada. E aquela chaminé está impregnada daquela energia de todo o ano de 2020. Esse contato e ali enche essa goteira que eu recupero com papeis, com cartas, com tecidos de algodão e também com um recipiente que ela conserva”, explica a artista.

Helena Manzan começou a fazer as pinturas e mini prints, que você confere aqui em primeira mão e ela mostrará tudo em futuras publicações. Coincidência ou não, esse texto que vem sendo gestado há alguns meses foi redigido numa Quarta-Feira de Cinzas.

E aquela musica do Renato Russo termina assim: “Mesmo com tantos motivos / Pra deixar tudo como está / E nem desistir, nem tentar / Agora tanto faz / Estamos indo de volta / Pra casa”.

2 thoughts on “Memórias do confinamento que ainda não terminou

Deixe um comentário