Literatura infantil e juvenil com a qualidade e o respeito que esse público merece
As crianças possuem uma capacidade interpretativa muito superior ao que costumamos imaginar
O mês de abril é marcado, entre outras datas, pelo Dia Mundial do Livro Infantojuvenil (2) e pelo Dia Nacional do Livro Infantil (18). Não por acaso, essas datas são celebradas no aniversário de nascimento de dois grandes autores que encantaram e seguem encantando esse público, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) e o brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948).
Este abril de 2022 foi escolhido pela escritora uberlandense Aline Caixeta para lançar o sétimo livro, que traz sete contos. “O pequeno vendedor de chicletes: e outros contos sem fadas” (144 páginas, R$ 30), foi viabilizado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Pmic), de Uberlândia, e inspirados nas narrativas de Andersen, autor, entre outros, dos clássicos “O Patinho Feio”, “A pequena sereia” e “A pequena vendedora de fósforos”.
Os contos de Aline são adaptados à realidade contemporânea brasileira abordando temas como desigualdade social, preconceitos e o sofrimento humano, mas também de esperança, imaginação, amizade, empatia e a humanidade compartilhada. E ela dedica-se muito aos estudos e pesquisas para dar a esse público de crianças e jovens a qualidade e o respeito que merece.
A escritora é uma prosadora graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e pós-graduada em Formação de Escritores e Literatura para Crianças e Jovens pelo Instituto Vera Cruz (SP). Por conta desses estudos e pela forma como a infância tem sido vivida atualmente, Aline fala ao Uberground sobre os principais desafios que os autores que querem chegar a este público, enfrentam.
Aline comenta que pensando na escrita em si, diria que os desafios são parecidos com os de se escrever qualquer outro tipo de literatura. É preciso atenção às palavras, à estrutura interna das narrativas, à construção de personagens interessantes e a uma série de outras coisas que são próprias do fazer literário. Obviamente, tratando-se de um público mais jovem, é preciso alinhar a linguagem e o conteúdo à bagagem cultural dos leitores para que o texto seja assimilável.
“O que não quer dizer o mesmo que subestimá-los! As crianças possuem uma capacidade interpretativa muito superior ao que costumamos imaginar. Curiosamente, me parece que um dos maiores desafios que temos enfrentado não está na produção artística nem no público-leitor infantojuvenil, mas numa parcela da população adulta que não lê e que, manipulada por todo um projeto de desconstrução da cultura, quer ditar arbitrariamente o que pode ou não ser escrito para as crianças”, afirmou.
E esses adultos usam como justificativa uma ideia de que “é preciso protegê-las”, sem perceber que a censura à arte não faz nada além de tornar mais vulnerável toda a sociedade. Se é vedado ao escritor falar de violência num livro infantil (observando-se, é claro, a delicadeza no trato do tema), será que o silêncio dele irá protegê-la?”, questiona a escritora, que na live de lançamento do livro comentou que a ignorância não protege ninguém.
“É absurda e insustentável essa lógica de que se eu não falar do monstro, o monstro não existe”, disse a autora, que já trabalhou com crianças em vulnerabilidade social. E para tornar seu trabalho mais acessível, cerca de 200 exemplares de “O pequeno vendedor de chicletes” serão distribuídos gratuitamente para instituições culturais e educacionais, com o objetivo intuito de colaborar para a democratização do acesso à arte e para a difusão da produção ficcional contemporânea. Os demais exemplares podem ser adquiridos a preço de custo, abaixo do valor de mercado, na loja do blog Recanto da Prosa. No blog também está disponível para download gratuito o e-book do primeiro conto da coletânea, que dá nome ao livro.
É absurda e insustentável essa lógica de que se eu não falar do monstro, o monstro não existe
PERGUNTAS X CERTEZAS
A humanidade, da mesma forma que evolui parece que resiste em avançar em alguns aspectos, principalmente no que diz respeito a acolher e respeitar as diferenças. Percebemos que quando vamos a um espaço aberto com crianças e lá há outras crianças elas logo se juntam e começam a brincar, dialogar e logo estão trocando figurinhas e tornam-se amigas com tanta facilidade.
Pergunto à Aline o que a gente perde ao se despedir da infância? Por que nos tornamos tão seletivos e exigentes quanto aos outros?
“Isso tem muito a ver com o que eu ia dizendo e acho que a resposta está na sua própria pergunta, quando você usa os termos ‘acolher e respeitar as diferenças’, pois me parece muito triste que estejamos tão suscetíveis a perder algo tão vital. Não acredito que as crianças sejam tão ingênuas e bondosas quanto muitos gostam de acreditar, pois todos nós chegamos ao mundo como pessoas amorais – o que é bem diferente de imorais. A-moral é simplesmente alguém que (ainda) não tem uma moral formada e isso é compreensível. Enquanto não somos educados a viver em sociedade, seguimos os impulsos do desejo, então é preciso que haja uma educação eficiente das emoções para o desenvolvimento de relações saudáveis”, explicou.
Aline fala de algo que é construído com o passar dos anos – mas a pergunta a levou ao que é desconstruído e que, como a interlocutora disse, nos torna seletivos e exigentes com os outros. “Particularmente, me parece que nossa maior perda, ao crescer, é exatamente a abertura para o desconhecido. As crianças possuem um olhar não viciado da realidade, o que se traduz numa capacidade de se espantar com as coisas e, portanto, numa assimilação do novo e uma predisposição ao questionamento daquilo que normalizamos ao crescer”.
As crianças vivem num mundo de perguntas e nós vivemos num mundo de certezas – o que é extremamente perigoso, pois são as perguntas que nos levam adiante
Aline também questiona, por exemplo, como é possível que deixemos de nos espantar ao ver pessoas vivendo nas ruas, em condições de total descaso e abandono? “Depois de adultos, já com nossos conceitos formados, nos predispomos (em lugar do acolhimento) ao julgamento baseado naquilo que consolidamos como verdade. Gosto de observar o sentido das palavras ao pensar nesse tipo de questão, afinal o que é o preconceito senão um conceito anteriormente formado? Etimologicamente, sabemos que ‘pré’ significa ‘o que veio antes’, mas na infância o ‘antes’ significa uma abertura. As crianças vivem num mundo de perguntas e nós vivemos num mundo de certezas – o que é extremamente perigoso, pois são as perguntas que nos levam adiante”.
A literatura é um caminho para a humanização
A parte gráfica do livro “O Pequeno Vendedor de Chicletes” é de uma delicadeza incrível. A ilustrações do artista Lelis, mineiro premiado internacionalmente, traz suavidade e beleza às páginas, o que torna a obra ainda mais atraente para as crianças, que podem se beneficiar, e muito, da literatura feita para elas.
“Sempre defendi que a literatura é um caminho para a humanização e, considerando a abertura das crianças para a construção dos saberes, isso se traduz no desenvolvimento das inteligências intra e interpessoal. Além de a literatura nos tornar pessoas mais críticas à avalanche de informações que recebemos todos os dias, falei anteriormente da educação dos sentimentos – e essa é uma das habilidades mais bonitas que a arte nos possibilita desenvolver; não num sentido pedagógico, mas num sentido empático”, disse Aline Caixeta.
No processo criativo, a autora é capaz de se colocar no lugar de um personagem que é diferente dela e acredita em coisas distintas daquilo que Aline foi ensinada a acreditar. Isso contribui para que escritora se torne alguém mais tolerante, predisposta ao diálogo e à compaixão.
“Em seu sentido primário, compaixão não é sentir pena, mas sofrer junto, o que significa compartilhar daquilo que não é meu. Atualmente, me parece que um dos maiores males da sociedade é o de olhar apenas para o eu, o que nos torna autorreferentes. Buscamos reforçar apenas aquilo no que já acreditamos, nos fechamos para a escuta e pensamos unicamente em nossos interesses. Se existe algo que ficou escancarado em meio a toda a tristeza da crise sanitária que temos vivido é que o problema do outro invariavelmente irá me alcançar”, avaliou.
Para Aline Caixeta, cuidar do outro é cuidar da nossa humanidade compartilhada, e a literatura nos possibilita esse contato com a alteridade de um modo que fala diretamente ao coração. “Se eu te mostro dados do número de mortos pela pandemia, isso fala ao meu intelecto. Os números evidentemente nos chocam, mas ouvir histórias de quem perdeu pessoas queridas é algo que deixa marcas muito mais profundas. Ouvir e contar histórias é algo que, desde as culturas mais ancestrais, apenas a nossa espécie é capaz de fazer, então por que desprezar uma capacidade tão preciosa? O direito à literatura, como já dizia Antonio Candido, não é um luxo que deve ser reservado a poucos, mas um direto humano a que todos nós – sejamos adultos ou crianças – devemos ter acesso”.