“Se eu não estivesse nessa área, provavelmente estaria muito infeliz. É como eu digo na peça: ator — a mais invejada e a mais desprezada de todas as profissões.” Assim resume Osmar Prado, aos 77 anos, sua entrega ao ofício, agora mais uma vez celebrada com a encenação do espetáculo “O Veneno do Teatro”, texto do espanhol Rodolf Sirera.
A montagem, dirigida por Eduardo Figueiredo, tem sido sucesso de público e crítica por onde passa. Não por acaso: trata-se de um texto encenado em 62 países desde 1978. Se passa no período pós ditadura de Francisco Franco, que foi de 1939 a 1975. Era o início do processo democrático na Espanha. Na versão brasileira a peça assume uma postura atemporal, inspirado na década de 20 em Paris.
“É um texto atemporal e está na ordem do dia. Um texto genial, que questiona as hipocrisias, a ignorância e os jogos de poder com elegância e força”, diz Maurício Machado, que divide o palco com Osmar. A peça foi escrita inicialmente para a TV, em 1976, chegando aos palcos dois anos depois.
O espetáculo completa um ano e quatro meses em cartaz neste domingo (11) e está em curta temporada em Uberlândia, cidade especial por um motivo. Além de Osmar Prado e Maurício Machado em cena, o palco tem a presença marcante do violoncelista Matias Roque Fideles, mineiro, de Uberlândia.
Maurício explica que a montagem brasileira é a única no mundo com música ao vivo e tanto ele quanto Osmar não gostaram da ideia no início. O mérito vai todo para o diretor Eduardo Figueiredo, que escolheu o violoncelo. Maurício conta da dificuldade em encontrar um violoncelista durante a audição. E foi aí que o destino agiu em favor da produção.
Eduardo conheceu Matias no Rio de Janeiro, onde o violoncelista do saudoso UdiCello Ensemble, passava as férias na casa da irmã.
“Eu disse pro Eduardo: eu não consigo enxergar essa peça com música ao vivo por conta da clausura. O Marquês convida o ator para os seus domínios e eu acho que essa sensação de enclausuramento se perderia com a música, esvaziaria um pouco. Eu estava errado. A música assessora o espetáculo, é um componente fundamental e um terceiro personagem”, disse Maurício.
Matias esteve presente desde o primeiro ensaio no processo que durou cerca de um mês e meio e para Maurício, esse período de criação, apesar de incrível, vem permeado por agonia diante de tantas possibilidades de caminhos para formação e formatação de um personagem, que nem sempre se dá pelo caminho mais óbvio. Matias executa a trilha criada pelo diretor musical Guga Stroete, com a qual também colaborou. Maurício revela:
Contar com o Matias na sala de ensaio foi fundamental para essa montagem. O Eduardo sabia o que ele queria da trilha. O Matias deu algumas sugestões e hoje a gente não enxerca esse espetáculo sem a música ao vivo.
Para Mauricio, a direção de Eduardo é brilhante, limpa e precisa emoldurada por uma trilha extraordinária, o que faz do espetáculo uma obra contundente e poderosa no maior sentido teatral da palavra.
Estreia em Uberlândia
A temporada de “O Veneno do Teatro” no Teatro Municipal faz parte do projeto Uberlândia na Rota das Culturas. A reportagem acompanhou a sessão de sexta-feira (9) que contou com poucos lugares vazios no Municipal. Foi aplaudido de pé e confirmou tudo que os atores compartilharam com os jornalistas na coletiva de imprensa realizada na manhã do mesmo dia.
Matias foi muito aplaudido entre os dois atores e falou da emoção de estar de volta ao palco do Municipal, em casa, onde já fez performances memoráveis com o UdiCello e agora ao lado de dois grandes atores do teatro brasileiro.
Os atores agradeceram o público, Lei Rouanet e aos produtores e patrocinadores locais. “Sem vocês nada disso seria possível, só a logística para transporte desse cenário fica em R$ 20 mil”, disse Maurício.
As próximas sessões são e no sábado (10), às 20h, e no domingo (11), às 18h. Ainda há ingressos à venda pelo Megabilherira. Saiba mais aqui.
Teatro é uma missão
Osmar Prado e Maurício Machado durante coletiva de imprensa (Adreana Oliveira)
A versão brasileira só chegou aos palcos graças à persistência de Maurício Machado. Ele conheceu o texto durante uma viagem à Argentina, país que considera um polo de teatro forte e respeitado. Depois de assistir a espetáculos que não gostou muito, no último dia ele assistiu “O Veneno do Teatro”. A sensação ainda é lembrada pelo ator:
Fiquei absolutamente hipnotizado. Fiquei impactado e atravessado pelo texto irretocável e tive aquela deliciosa sensação de quando você como intérprete deseja fazer algo, eu tinha que fazer essa peça.
Hoje ele percebe a mesma reação em quem assiste a versão brasileira. Para Maurício, esse é um tipo de espetáculo em que o ego do ator, a vaidade dele, não pode estar em primeiro plano. Eles estão ali a serviço de um texto simplesmente genial.
O texto de Sidera não dá brechas para o improviso. Osmar Prado e Maurício Machado criaram alguns momentos, “umas firulas” para brilharem mais, porém, definem a essência do texto como perfeita, “um presente para qualquer ator”. Ali há momentos com a transposição do ego de um que passa para o ego de outro, com a diferença de que um tem poder e o outro acha que tem. Maurício completa:
O Marquês é uma personagem que tem um arco íris inteiro de possibilidades, o ator precisa usar todas essas tintas para esse personagem e tivesse vitalidade para emprestar para essa personagem e Eduardo Figueiredo pensou no Osmar.
O caminho até “O Veneno do Teatro” vem permeado por um antigo desejo de Maurício Machado. Em 1998, o ator tinha apenas dez anos de carreira e não havia feito televisão. Ele buscava apoio para realização de “Em Nome do Pai”. O nome que surgiu de imediato para ser o seu pai na peça foi o de Osmar Prado:
Osmar sempre foi o meu grande ídolo, minha referência. Na época, fui ousado e o procurei. Ele, generosamente, emprestou seu nome ao projeto. Isso me ajudou a conseguir o teatro, iniciar os ensaios. Mas ele estava contratado pelo SBT e não pôde atuar.
Osmar Prado estava em “Éramos Seis” inaugurando a teledramaturgia no SBT depois de interpretar Hitler no teatro em “Uma Rosa Para Hitler”. “Não era um grande texto, mas era um grande personagem. Ganhei por esse papel o prêmio de melhor ator do ano e tive a honra de receber Ariano Suassuna no meu camarim, além de Antônio Fagundes que levava 10 pessoas e pagava 11 ingressos”, recorda o ator.
Os dois atores chegaram a ser colegas em “Cordel Encantado” (Globo, 2011), mas não contracenaram por serem de núcleos diferentes. Então, 28 anos depois, o tão esperado encontro em cena se concretiza em “O Veneno do Teatro”. Maurício elogia:
Assisti a todas as peças que ele fez. Osmar é um dos maiores atores desse país: completo, versátil, sempre se renovando e mesmo com a experiência dele tivemos uma missão hercúlea de dominar o leão que é esse texto”, declara Maurício, que em novembro celebra 28 anos no ofício de ator.
Osmar recorda um fato importante:
“Este texto é oriundo da vivência do autor de uma ditadura militar. A ditadura do Franco na Espanha foi terrível. As ditaduras incitam as pessoas que têm uma visão mais clara, como autor da peça, o instigou a escrever, a ‘vomitar’ tudo que se passa dentro de um regime autoritário seja ele qual for.
Para ambos os atores, vale a verdade do palco e eles esperam que o público saia diferente de como entrou, o que também é o objetivo do autor. Ele afirma ser um privilégio fazer parte dessa montagem da qual o público não sairá indiferente, já recebe uma dose do veneno ao se colocar na plateia. Osmar Prado finaliza:
“O teatro precisa questionar, precisa deixar marcas e acreditamos que algo vai mexer com vocês aqui em Uberlândia. Mostramos nossa hipocrisia, nossa ignorância, as idiossincrasias de uma sociedade capitalista, canalha. E fazemos isso com elegância.”.
Um duelo de egos entre personagens cheios de camadas
Matias, Osmar e Maurício no Municipal de Uberlândia (Adreana Oliveira)
A trama é simples em sua forma, mas carregada de complexidade psicológica. Um poderoso Marquês convida um ator para fazer uma apresentação privada. Mas o que se desenrola é um jogo perigoso de manipulação, vaidade, poder e identidade. “O Marquês pode tudo. E, ainda assim, provoca risos. É um canalha — mas é sincero sobre isso, então eu o defendo: ele não é hipócrita”, provoca Osmar, intérprete do Marquês.
Maurício comenta que o texto precisa da alquimia, da amálgama entre eles, da confiança absoluta, exige física e psicologicamente um comprometimento para esse duelo entre dois homens.
O ator interpretado por Maurício é um artista inicialmente arrogante, mas que se vê enredado por forças maiores: “Ele é um ser dependente de um sistema que o oprime. O espetáculo expõe esse microcosmo da vida com todas as suas contradições”, disse o ator que também colaborou artisticamente para a criação do cenário.
E com essa cenografia e figurinos elegantes — que remetem a um período histórico, mas não o fixam —, a encenação tem sido elogiada pela sobriedade e impacto. “É luxuosa no sentido teatral da palavra. Um espetáculo caprichado, uma carpintaria cênica poderosa. Um louvor ao teatro”, define Maurício.
“Esse texto é um presente para qualquer ator. Ele é irretocável. Quando li pela primeira vez, tive duas reações: ‘Meu Deus, é isso que eu quero fazer!’ e, em seguida: ‘Não sei se terei memória para tudo isso’. Porque não dá para improvisar. A essência dele é perfeita”, conta Osmar.
A produção é determinada por Osmar prado como elegante. “A peça não tem um palavrão, o espetáculo é elegante no sentido de que ele seria de época, ele se passaria na França pré-revolucionária de 1789, mas ele é atemporal”, disse Osmar.
Para Maurício, é “um luxo” realizar um texto como esse porque é algo que todo artista persegue no cinema, na televisão ou no teatro.
“Nós sempre perseguimos grandes personagens. Há atores que não se preocupam tanto com a dialética, com a retórica do que vão dizer sobretudo no palco porque na televisão, no audiovisual nós não somos muitos donos das nossas escolhas. Alguns atores como o Osmar podem dizer não, mas a grande maioria não pode se dar ao luxo de escolher os próprios papeis”.
Osmar afirma que os diretores mais seguros querem os criadores, não temem a criação. “Os burocratas não, esses querem controlar. Mas quem é que controla a arte? Ninguém vai fazer isso.”
Mais de seis décadas de dedicação à atuação
Osmar Prado e Maurício Machado são os protagonistas de “O Veneno do Teatro” (Adreana Oliveira)
Entre lembranças e confissões, Osmar Prado fala sobre os altos e baixos da profissão ao longo dessa trajetória de 65 anos. Relembra quando, ainda jovem, foi impedido de alugar um apartamento porque era ator e por isso acreditava que seu modo de vida não se adaptaria às regras do condomínio. Osmar despediu-se e saiu, não antes de atender ao pedido de autógrafo da filha do proprietário do apartamento que perdeu um ótimo inquilino.
Osmar fala ainda das recusas a alguns trabalhos, por acreditar que os papéis não o desafiavam. Ele se recorda de uma apresentação em Uberlândia (“Delírio Poético Musical”), afirma que o sentimento de estar de volta com “O Veneno do Teatro” é uma espécie de cumprimento de dever porque na outra ocasião veio com uma peça que não condizia com o ele gostaria de falar.
“Fiz por fazer e pela primeira vez eu venho a Uberlândia o que precisava mostrar para vocês, que nunca me viram verdadeiramente no palco, como eu gostaria que vissem agora. Vocês verão o trabalho de dois atores e de um músico, mas principalmente o que é fazer teatro para o ator e eu tenho esse privilégio de estar em “O Veneno do Teatro”, aos 77 anos, interpretando o Marquês. Nunca tente humilhar um cara que tem talento”, afirma o ator, que usou de exemplo o “rei” Pelé em um momento de superação.
Ele volta a Uberlândia para se “vingar dos erros” que cometeu em trabalhos que não vê hoje como significativos. E quando perguntam o porquê de ficar 10 anos afastado dos palcos, a resposta é simples.
Queria voltar com algo que me impulsionasse e o texto apareceu quando o Eduardo me ligou.
Foi nessa época em que o ator recusou dois convites da Globo, o primeiro para integrar o elenco de “Guerreiros do Sol” (ainda sem previsão de estreia), e para o elenco “Renascer” (2024), remake da novela em que Osmar Prado interpretou brilhantemente Tião Galinha em 1993.
“Disse não porque meu colega Irandhir Santos interpretaria o Tião Galinha, e isso geraria comparações. Queriam que eu fizesse o dono da venda. Não fiz, encerrei minha carreira na rede globo nesse período com o Velho do Rio”, disse ele referindo-se ao personagem de “Pantanal”, exibida em 1999 pela Manchete com Cláudio Marzo no referido papel, com remake da Globo em 2024.
Criei de dentro pra fora o meu Velho do Rio, nem olhei o que o Cláudio Marzo fez na Manchete. Em dois momentos me perguntaram qual seria o tom usaria em uma cena. Respondi que o Velho tem infinitos tons. Eu escolhi um e disse que se a pessoa tivesse uma poderíamos discuti-la. Nunca mais essa pessoa perguntou que tom eu usaria. E eu sempre sigo a minha intuição.
Essa postura rendeu um prêmio de melhor ator coadjuvante por Tião Galinha e algumas brigas ao longo da carreira. Em uma determinada cena uma diretora foi enfática: “aqui você chora”.
Osmar já ouviu muita coisa para desencorajá-lo. Além do advogado que se recusou a alugar o imóvel, teve um ex-sogro que disse que ele tinha “tudo pra dar certo” e o que “estragava era essa coisa de ser artista”. O pai também não aprovava o ofício do artista no início e a tia que mais o incentivou sofreu as consequências. Mas o sobrinho a deixou orgulhosa.
Nessas horas Osmar Prado recorda de sua primeira performance no teatro, aos 12 anos, quando nem seu nome se preocupavam em confirmar e como uma crítica de Miroel Silveira (1914-1988) fez a diferença em sua vida. “Eu perdi a voz, mas corri atrás. E eu tenho em casa o recorte do jornal de 1959 com a crítica dele, que desceu o cacete na produção, no Sérgio Cardoso, mas escreveu que ‘o menino Osmar Prado, no dia da estreia, representou a sua cena com extraordinária bravura e excepcional personalidade’. O crítico reconheceu ali o meu potencial”.