“O teatro é um sacerdócio”, afirma Irley Machado
Uberlândia sempre foi uma cidade que recebeu talentos de várias regiões que por aqui tornaram-se referência em suas especialidades como Irley Machado, pesquisadora, professora, artista de teatro, diretora, apaixonada por óperas! O teatro para ela é um sacerdócio. “Respeito muito a minha arte, para mim é sagrada”.
Gaúcha de Caxias do Sul, fez sua primeira graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Apaixonada por história e literatura – principalmente grega e espanhola, suas especialidades – fez mestrado em Artes na Universidade de São Paulo (USP) e estava trabalhando por lá quando passou num concurso para lecionar na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), uma relação que durou duas décadas e faz parte da história do curso de Artes Cênicas da universidade. Irley é convidada de uma live nesta noite com o Grupontapé (leia mais abaixo) e conversou com o Uberground sobre o teatro no Brasil e na França, onde mora atualmente, sobre valorização da arte e das pessoas e sobre o que sonha para seu país natal.
“Eu sou bem nômade, sempre fui. Cheguei em Uberlândia em dezembro de 1994, quatro meses depois da criação do curso de Artes Cênicas. Comecei a lecionar no segundo semestre do curso”, conta Irley.
Ela recorda as dificuldades dos primeiros anos. Um quadro de professores extremamente enxuto era um dos principais problemas do curso. “No início éramos eu, o professor Lourival Paris, efetivos, e a professora Beatriz Bolonha, substituta. Foram tempos muito difíceis porque já em 1995 tivemos a segunda turma do grupo de teatro, e se sucederam outras turmas e nós éramos poucos professores. O professor Robson saiu para o doutorado e não voltou… e assim foi”.
Irley também saiu em 1999, passou quatro anos e meio na França onde fez doutorado em literatura (Études Ibériques et Latino Americaines) na universidade de Sorbonne. Mas ela voltou. “Meu compromisso era com a UFU. Antes mesmo de eu sair fizemos concursos para novos professores, e foram contratados o professor Narciso e a professora Renata Meira. Quando regressei voltei às minhas aulas, ingressei no mestrado em Teoria Literária como professora, como orientadora. De 2008 a 2012 eu fui Diretora de Cultura na universidade”.
Toda essa vivência torna Irley uma testemunha das mais relevantes na análise da cena do que veio a tornar-se o curso de Artes Cênicas da UFU a partir do momento em que começou a ganhar mais relevância. Ao olhar para quase três décadas atrás, a pesquisadora afirma que lá no início era possível vislumbrar o que o curso se tornaria, com outros desdobramentos com o curso de Dança e a independência. “No início nós pertencíamos ao curso de Música era um único departamento”.
Irley Machado é adepta de atividades online, inclusive para pesquisa, gosta também como a tecnologia aproxima pessoas na hora de uma entrevista por exemplo, quando entrevistado e entrevistador estão em pontos muito diferentes do mapa. Mas tem tem coisas que gosta mesmo à moda antiga porque a arte fica melhor com seu espectador vivendo essa experiência. Ela acredita que a pandemia causada pela Covid -19 deve trazer aprendizado para a classe teatral e classe artística em geral e fala um pouco sobre como tem lidado com isso.
“Tem se tornado muito sério para os artistas esse isolamento, esse afastamento, arte só se faz na presença do público”, afirma. Na França os museus e teatros estão fechados. Irley recorda o início de 2020, primeiro confinamento – na França os cidadãos ficaram totalmente confinados. “Quando reabriu, em junho, conseguimos assistir algumas peças de teatro ao vivo, algumas óperas, alguns concertos, depois os concertos foram levados para parques abertos, algo fantástico e muito positivo”.
A pesquisadora pôde voltar a assistir peças de teatro em pequenos espaços, onde havia o distanciamento social respeitado, os cinemas também abriram com restrições, mas isso foi até dezembro. Agora, está tudo fechado novamente. “O que as pessoas têm feito são stand ups, pequenas peças que lançam na televisão. Há também iniciativas maravilhosas como o Corpo de Baile do Ópera de Paris dançando na frente de sua sede. As pessoas precisam mostrar a sua arte. Foi fantástico porque é ao ar livre, todo mundo pode assistir e de graça. Era como um protesto, um protesto ao universo, porque não se pode protestar contra os governos porque estão fazendo o máximo que podem”.
No Brasil, Irley aposentou-se em 2015 depois de 40 anos como docente, 20 deles na UFU.
O reconhecimento aos artistas na França e a falta dele no Brasil
A valorização do artista e das artes na França chamou a atenção de Irley Machado na primeira vez em que viveu no país, como doutoranda. Na Sorbonne seus estudos eram sobre a América Latina. Ela analisava o teatro de Ariano Suassuna (1927-2014) e a influência do Teatro Medieval na obra dele. Em 2013 voltou à França para o pós-doutorado, na época já com um acordo com a Universidade de Nantes para a troca de professores, para a troca de pesquisadores. Atualmente é pesquisadora do Grupo de pesquisa Centre de recherches sur les identités nationales et internationales (CRINI). “Pesquisamos a dramaturgia poética de Federico García Lorca, ele agora é minha grande paixão, inclusive montei peças dele no Brasil e também na França”.
Irley ama a vida que tem na França, principalmente pelo respeito que há pelas pessoas na cultura francesa. Lá também encontrou o amor, e se casou com um francês. Ela conta que tem uma vida simples, mas enriquecedora em vários sentidos, diferente da rotina dela no Brasil. ” Na França eu leio muito, eu escrevo muito, e traduzo também. Estou traduzido livros que deverão ser publicados no Brasil em breve. Tenho um trabalho colaborativo de revisão com um professor russo na Sorbonne”.
Em relação ao teatro, orienta eventualmente alguns grupos que a procuram, atividade que lhe dá muito prazer. Não fez nenhuma peça lá em função também da Covid-19. Gosta de frequentar óperas, museus, bibliotecas, agora fechados, e se permite caminhar todos os dias ao redor de um lago próximo à sua casa, ainda com medidas restritivas. “Você só pode sair da sua casa e ficar fora durante uma hora por dia e também não pode ficar a mais de 1 quilômetro de sua residência. Tem toque de recolher às 18h e tá tudo praticamente fechado. Então, acabo lendo e escrevendo muito. E bordo também! Amo bordar!”.
Ela pensa em retornar ao Brasil e retomar o trabalho teatral, mas não sabe quando. Aqui tem a família que ama…as filhas, os netos, mas está infeliz com o que está acontecendo no País. “Esse governo que desrespeita as bases da nossa civilização é uma perda muito grande para o Brasil , mas é o Brasil que escolhe. Então, infelizmente, os analistas políticos e os analistas financeiros de fora do Brasil estão vendo uma situação caótica que deve perdurar por 20 anos. A expectativa não é boa”, lamenta.
Irley sonha com a revalorização da arte em nosso país. “Fico muito triste com o empobrecimento que tenho visto. Acho que a televisão contribuiu muito para isso porque a classe média, que era a classe que mais frequentava teatros não está mais frequentando. Não falo do período de pandemia, mesmo antes. Em Uberlândia, por exemplo, se traz um grupo de atores que tem fama na Globo, o teatro enche. Se é uma produção local as pessoas não vão ao teatro. É uma questão muito séria, uma questão de cultura que precisa ser repensada, desenvolvida e isso começa na infância”, afirma Irlei.
Para ela, as crianças devem ter acesso a boas peças de teatro, boas contações de história e bons espetáculos de dança. “Infelizmente o Brasil tem essa deficiência não vou dizer que é geral, não vamos generalizar, mas isso existe em nosso país. Nem mesmo o folclores das nossas regiões é valorizado, salvo algumas exceções o Norte, o Nordeste, que ainda valorizam seus folclores, sua cultura tradicional. Lembremos o nosso amado Ariano Suassunam que tanto defendia a boa cultura popular”.
Exemplo de ação positiva para o fomento do mercado artístico
Irley Machado pode dizer que falar de arte e artistas no Brasil e falar de artistas na França remete a duas coisas absolutamente diferentes, desiguais, não tem como comparar.
Se por aqui é complicado viver da própria arte mesmo em tempos sem pandemia, agora a situação está mais delicada. A pesquisadora afirma que na França existe muito apoio e não é algo com de cunho puramente assistencialista.
“Quando os artistas não estão trabalhando eles têm uma espécie de seguro-desemprego, o chômage technique, ou desemprego técnico. Nesse período o artista vai fazer cursos, vai dançar, vai trabalhar a voz, vai fazer outras coisas que são permitidas porque eles ganham o seguro que lhes permite fazer isso. Se uma companhia de dança está em turnê, outros profissionais ligados a ela que ficaram na cidade continuam a aprimorar sua técnica, aprimorar sua arte com esse auxílio”, explica Irley.
Live com o Grupontapé
Irley Machado é a convidada de hoje, às 20h, de uma live com a companhia de teatro uberlandense Grupontapé, no canal do YouTube do Grupo. O encontro antecederá a exibição da videopeça “Questão de Hábito em Tempo de Isolamento”, previsto para a próxima semana, na mesma plataforma.
A pesquisadora e diretora teatral tem papel importante nos 26 anos de história do grupo e falará sobre o atual momento do teatro. Ela é considerada a “mãe teatral” do Grupontapé.
“A vivência com o Grupontapé foi uma das experiências mais gratificantes que eu tive. Realmente foi um trabalho fantástico conhecer esse grupo tão empreendedor e que enfrentou sempre e enfrenta muitas dificuldades para se manter unido, coeso, com uma arte que tem que tem realmente um valor inestimável”, afirmou Irley.
Ela conta que entre 1996, 1997 o Grupontapé voltava de São Paulo e a procurou na UFU, interessados em trabalhar com ela. “Eu costumo dizer que arte, teatro, é sacerdócio e pra mim foi um sacerdócio, é um sacerdócio, é algo ao que eu me dedico inteiramente pelo qual eu tenho muito respeito. Eu respeito muito minha arte, é uma arte sagrada. Trabalhar com o Grupontapé foi uma coisa fantástica porque eles estavam aprendendo e eu tinha coisas para ensinar para eles e tinha coisas para aprender com eles. Eles estavam enveredando pelo teatro aplicado que é uma arte difícil , muito difícil, porque não é livre na medida em que você sempre tem que responder a exigências e expectativas. Isso é diferente do outro teatro ao qual eu estava acostumada, mas foi fantástico”, recorda a diretora.
Irley trabalhou muito com o grupo a questão dramatúrgica, ou seja, a revisão de textos dramáticos, e também na questão cênica, na direção das peças. “Enseinei e aprendi muito com eles”, finalizou.
Para acompanhar a live nesta sexta (19) clique aqui.
“Questão de hábito em tempo de isolamento” terá novas sessões
Com recursos da Lei Aldir Blanc, por meio de edital da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Uberlândia, o Grupontapé realizará sessões gratuitas da videopeça “Questão de Hábito em Tempo de Isolamento”, que foi pauta aqui no Uberground e você pode ler a reportagem completa aqui.
As sessões acontecem de 21 a 28 de fevereiro, sempre às 20h, no canal do Grupontapé no YouTube. Não adianta entrar depois do horário porque a videopeça não ficará no ar depois do horário de exibição.