Uberground

Neste momento, diante de tanta burrice de ódio, é o Brasil de amor, profundo que se conecta pela música

Vivemos uma dicotomia – tudo parece estar passando rápido demais, ao mesmo tempo em que tudo está parado demais – a arte segue como um bálsamo na ferida que insiste em permanecer aberta na alma. Aliás as artes… elas começaram a chegar quase que exclusivamente por meio das telas, contando com iniciativas públicas e privadas para não minguarem. Porém, o que mantém esse motor girando é, talvez mais do que a paixão, o amor.

“Amor de AM” é o álbum mais recente de Enzo Banzo, músico, escritor, poeta, colunista de jornal, instrumentista, vocalista…  um artista, mineiro, do interior, que não se avexa na hora de colocar seus trabalhos no mundo.

Neste disco, que chegou aqui em casa no formato CD, com porta-copos personalizados pra entrar no clima das canções, teve um relacionamento com uma pegada da nostalgia. Primeiro, “ler” o disco. Abrir o encarte, ler a ficha técnica e todas as letras, apreciar as imagens e só depois dar o play.

E depois de ouvir foi a hora de conversar com esse cara que acompanho mesmo antes de me tornar jornalista, quando ele começou a despertar novas ambições a crianças do belo projeto que hoje é o Emcantar. Vale a pena publicar essa conversa virtual na íntegra. Se prefere uma listinha com tópicos, essa reportagem não é para você, a não ser que esteja disposto a se dar um pouquinho mais de tempo pra essa prosa.

UBERGROUND (ADREANA OLIVEIRA) : Eu posso dizer que antes de ouvir seu CD eu o li, como fazia nos velhos tempos: abrir, ler as letras, a ficha técnica e depois colocar pra tocar. Conta como foi fazer esse álbum tão álbum mesmo, com todas as canções conectadas, como se fosse uma noitada num bar… na contramão da cultura dos singles e EPs tão em voga.

ENZO BANZO: Gostei dessa colocação de “álbum tão álbum”. As músicas estão mesmo conectadas. Gosto de álbuns que giram em torno de um conceito. O que tem nesse disco justifica ser um conjunto, por mais que esteja na contramão do mercado. A minha geração se formou com isso e gosta de ver o álbum como uma unidade.

Essas canções foram brotando aos poucos nos últimos dez anos, tem canções desde 2012. Eu componho bastante, em umas fases mais, em outras menos. Gosto dessa verdade pungente das canções de amor e me afeiçoei a esse universo. Essas músicas surgiram entre outras. Além das músicas para “Amor de AM” acabei escrevendo para minha banda, Porcas Borboletas, e para o meu disco anterior, ”Canção Escondida”.

A vantagem de ruminar o material por muito tempo é que a vantagem de selecionar o que está funcionando mais como uma unidade. Eu tive tempo para compor, para filtrar e para ordenar um conjunto que dialoga entre si e depois veio a produção musical do Saulo Duarte, que é do Ceará, e também toca em várias músicas. Contei ainda com o Victor Bluhm, o João Ledo e Nath Calan. A Nat também participa nos vocais, assim como a Malu Maria. Composições, além das minhas, tem do Danislau, meu companheiro no Porcas, do André Mourão, do Gustavo Galo e do Diego Mascate. Foi um disco que contou com gente muito alinhada e afinada, esse clima contribuiu para a unidade alcançada.

Você também publicou um livro em 2014, “Poesia colírica“, ministrou oficinas diversas no EmCantar, esteve perto na articulação de festivais como o Jambolada em Uberlândia. Me conta qual arte se manifestou primeiro em sua vida: a música, a poesia, a literatura, ou foi tudo ao mesmo tempo?

Em termos de expressão, a escrita sempre foi anterior à música. Desde muito pequeno, desde a alfabetização, eu era o menino que escrevia bem, ficava entre os primeiros colocados nos concursos de poema na escola, fazia boas redações. As escritas – poética e não poética – se manifestaram primeiro na expressão no ponto de vista da vivência. Já a música está comigo desde sempre e sou apaixonado! Era apaixonado pelo universo dos discos tanto de crianças como de adultos. Fui fazer aula de violão com 11 anos de idade e aprendi fácil. Mas cantar foi uma luta…

Já fiz muito trabalho com criança e sei que tem menino que já nasce afinado… Eu era o completo oposto. Por insistência fui atrás desse negócio de cantar e pra mim veio com menos naturalidade do que o ato da escrita, mas eu vejo que o meu gosto pela poesia foi formado pela poesia da canção desde Caetano Veloso até os Titãs, passando pelas modas sertanejas. Essa poética da canção me fascinou desde muito pequeno. Nesse sentido é um amálgama, um conjunto.

Já fiz muito trabalho com criança e sei que tem menino que já nasce afinado…eu era o completo oposto

Todas as canções, apesar dessa unidade que o álbum tem, também funcionam bem sozinhas, como uma coletânea de episódios de uma série de TV que você vê aleatoriamente.  Você e seus parceiros nessa empreitada conseguem levar para a cabeça do ouvinte um filme. Como está sentindo a receptividade ao trabalho?

Todas têm uma certa narrativa, uma historinha… Eu venho trabalhando essas canções há muito tempo. A receptividade começa desde antes da gravação. Eu passei uma temporada morando em São Paulo com o Tatá Aeroplano e com o Felipe Antunes e já tinha algumas dessas canções. Cantarolava elas na cozinha do apartamento e já pensava em gravá-las, antes do “Canção Escondida”. Conversava com eles e sentia que se identificavam, o que também acontecia quando tocava numa roda de amigos e amigas. A partir daí vi como as pessoas se reconhecem em músicas como “Burrice de amor”. A pessoa se vê na história. Falo de mim, mas não falo só de mim; não tô falando de ninguém, mas ao mesmo tempo estou falando de todo  mundo. A música tem esse poder de gerar um reconhecimento do ouvinte. Tenho recebido feedbacks muito bacanas. Quem já conhecia as canções fica impactado pelo resultado sonoro e os que conhecem agora dizem que até colocam faixas no repeat.  A música entra no cotidiano e é isso que eu gosto, a música entra na vida da pessoa.

Falo de mim, mas não falo só de mim… não tô falando de ninguém e ao mesmo tempo estou falando de todo mundo

Durante esse período de arte nas telas ao qual ficamos entregues no último ano e meio, e mais um tempinho aí por vir, o que descobriu sobre você que não sabia?

De imediato lembro da canção “Meus tempos de criança”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, quando cantam: “Eu era feliz e não sabia”. Na verdade todo mundo descobriu que tinha coisas muito valiosas da convivência, da proximidade, do abraço, coisas que tinha tão cotidianas que de alguma forma deixaram de ser seguras. A música é boa pra lembrar disso. Sabíamos que precisávamos do abraço, da presença e do afeto e redescobrimos isso agora. Acredito que eu, nós, tivemos que nos reinventar nesse tempo para conseguir manter nossos afetos, relacionamentos, comunicação, trabalho e solidariedade em momentos tão difíceis. Descobrimos que precisamos de engajamento social, de ter a percepção da sociedade como um todo. Aprendemos a fazer de tudo à distância sem o calor da presença. Descobrimos que somos capazes de fazer isso e manter a chama do que representa a gente junto.

Aprendemos a fazer tudo à distância sem o calor da presença

Confesso que o título do álbum me confundiu…acho que me confunde ainda… Fico pensando em um nome começando com A e terminando com M e de repente já volto pro rádio AM. Nas letras você traz alguns dos ícones que até hoje marcam presença nessas ondas, que por uma frase ou uma expressão a gente já sabe quem é. Me fala um pouco do seu relacionamento com o rádio.

História curiosa… o título veio depois de tudo pronto. Pensei em vários. O primeira foi “As canções que eu não fiz pra você”, depois “Comédia romântica”. Acabou que até fiz um show com o nome do segundo, mas a música ficou fora do álbum. Fui num show em São Paulo, não me lembro de quem, mas estava com o Gustavo Galo. Ele é da trupe Chá de Boldo e tem um trabalho solo ótimo, super ligado na poesia.

Naquele papo já na madrugada a gente pirou nesse lance que amor começava com AM. E o rádio AM corta o Brasil inteiro, é uma intersecção, uma junção, é algo que é da indústria da música mas que existe graças à tecnologia a partir do século XX e entra dentro do Brasil profundo.

Esse é o um Brasil que chega em todos os lugares e passa a fazer parte da vida das pessoas. E existe um estilo de composição passional muito ligado a esse Brasil profundo. Essa rádio AM é o mesmo que, às vezes, quem é do meio do rock, da MPB tem um certo preconceito. Naquele momento estávamos num momento de quebrar isso de buscar o valor dessa canção enquanto potencial de expressão profunda de um sentimento.

Eu e Gustavo chegamos à conclusão de que esse amor incontido que se joga, que se lança é de AM, da rádio AM. Daí começamos a lembrar das músicas desse universo. Depois que incorporei “Amor de AM” ao repertório que eu fazia entre amigos ou em shows, as pessoas falavam que eu era “especialista em fazer música de amor e de AM”. Vi aí um jeito de identificar o repertório todo. Eu só ouvi o que estavam dizendo e assumi essa minha relação com o rádio.

Pensei muito nas canções que eu ouvi sem querer, as músicas que não escolhi ouvir, mas elas batem na minha memória afetiva de quem é do interior, ouviu música  na casa dos outros, no rádio, no programa de auditório na TV. A gente não escolhia que elas fizessem parte da nossa vida mas foram entrando e guardando o lugar delas.

Sai de uma cidade pequena, Ibiá, e vim para Uberlândia. Aqui entrei em contato com uma produção de vanguarda e o Porcas Borboletas foi nesse caminho. Tínhamos como referência o rock da vanguarda paulista. E o Porcas abraçou isso do nosso jeito. Não negamos nossas origens e foi meio o que aconteceu na Tropicália. Caetano já fazia isso: o que para muitos era cafona pra ele era parte do que é o Brasil e essa diversidade é linda.

Neste momento, diante de tanta burrice de ódio, é o Brasil de amor, profundo que se conecta pela música. É dele que eu falo quando tô cantando e exaltando o amor. Esse “Amor de AM” é, de alguma forma, a canção que vem do rádio, do disco, das tecnologias… entrando em Ibiá, onde eu cresci, e formando em mim uma sensibilidade para a música, para a canção que não existiriam sem o rádio, sem a TV… até chegar na MTV! Até chegar nas plataformas de streaming de hoje. É isso que vai moldando a minha personalidade.

Para adquirir “Amor de AM” acesse a lojinha do Banzo. Ouça na sua plataforma digital favorita.