Poesia para todas as gentes
Perguntei à historiadora Beatriz Rocha o que a levou enveredar pela poesia. A também educadora social e poeta lançou, em março, o primeiro livro, “A Mulher Grande”, pela editora Uruatu, no selo político Hecatombe. Primeiro, ela se permitiu inverter a pergunta.
“Acho melhor dizer o que levou essa poeta a se enveredar pelo mundo da História. Meu afeto pela literatura e escrita é anterior a qualquer coisa na minha vida, e quando olho para trás, me surpreendo um pouco por nunca ter cogitado uma área profissional mais próxima do universo literário. Porém, apesar de ser clichê dizer isso, há toda uma ligação entre História e construção de narrativas, o ato de contar não é apenas uma banalidade. A observação do homem e da mulher no tempo inspiram versos e convidam o estudioso atento a mergulhar nas dimensões subjetivas da alma humana – seja lá o que isso signifique”.
E Beatriz Rocha também se permitiu não ter amarras nessa estreia. Em “A Mulher Grande”, segundo há poesias sobre os encontros e desencontros de um corpo que tenta nascer, se perceber quanto existente e possível. Sobre corpos, no plural. Traz vivências sobre como é ter um corpo que carrega uma marca.
A escritora recorda que sempre observou outros poetas falando que o primeiro livro foi meio no susto, nada planejado, num dado momento notaram que tinham um amontoado de páginas e resolveram organizar para ver no que dava. E com ela não foi muito diferente.
“Os poemas que integram ‘A Mulher Grande’ começaram a ser escritos em 2018, período em que passei a fazer mais experimentações estéticas, com novas referências e novas relações com o espaço do texto. Desde muito nova – criança mesmo – tinha vontade de publicar, mas não escrevia com essa intencionalidade, até porque tinha toda uma trava em mostrar para o mundo, uma timidez com esse desnudar-se que a escrita intimista propõe”, explicou, em entrevista ao Uberground.
O processo de curadoria foi em outubro do ano passado, quando Beatriz viu que a editora Urutau estava com chamada aberta para receber originais para a Coleção Mil Tons de Escrita LGBT, parte do selo político Hecatombe. Ela pensou: “Por que não?”. A partir daí, partiu para a digitalização dos manuscritos, impressão.
“Joguei tudo no tapete do quarto e me embrenhei dentre aquelas páginas. Foi um momento de contato mais profundo com as minhas produções, tentando enxergá-las sob uma lente mais distanciada, pensando em possíveis percursos, construções de narrativas e eixos temáticos. Pouco a pouco notei que muita coisa ali falava sobre corpo e fui seguindo essa linha. No fim das contas, para o original ter maior coerência, ficaram mais poemas de fora do que de dentro – o processo de curadoria em si também é um tipo muito especial de arte”, comentou.
Em suas últimas experiências como professora ela ainda não se assumia publicamente como poeta, guardava seus papéis em gavetas e escondia do mundo. Apesar disso, sempre se considerou poeta, independente desse desnudar-se que só veio mais tarde. E a poeta ajuda a professora da mesma forma que a professora ajuda a poeta.
“Tudo que perpassa pela dimensão humana nutre o poeta e ‘engorda’ os versos: são pessoas que habitam os versos, tudo é fruto de observação do cotidiano. Sendo o educador alguém que está em contato permanente com gente, disso sempre surgem trocas e afetos surpreendentes que direta ou indiretamente compõe os escritos. É a oportunidade de ver, escutar, refletir, aprender com o outro… Enxergar o outro de fato. Toda essa dinâmica de escuta aberta é mais um mergulho, mais um material para reflexão das subjetividades e relações humanas. É isso que faz a arte”.
MUDANÇA
Beatriz Rocha nasceu no interior de São Paulo em 1997. Cursou História na Unicamp e desde 2019 vive em Uberlândia. “Tinha acabado de me formar e surgiu uma oportunidade de emprego na área cultural da cidade. Não sei dizer se escolhi ou fui escolhida, creio ter sido uma variedade de fatores interiores e exteriores que me fizeram chegar a essas terras, mas sempre, é claro, um desejo pelo novo, por ter novas experiências – inclusive artísticas – e conhecer novas pessoas. Fato é que, independente de escolhas, essa cidade muito me acolheu, já me sinto praticamente mineira”, disse.
Apesar do curto período na cidade, ainda em um cenário de pandemia na maior parte do tempo, Beatriz já percebeu que Uberlândia tem um circuito literário bem diversificado. “A cidade abriga poetas incríveis que estão sempre agitando por aí, organizando saraus e intervenções poéticas urbanas. Os artistas do interior resistem e lutam por transformações culturais, sociais e políticas – afinal, tudo está interligado. São combativos em cobrar maior atenção do poder público para fomentar suas produções, pois ainda há grande falta de investimento e interesse a nível municipal e estadual, com uma grande concentração de recursos em Belo Horizonte. É uma luta permanente e bonita pela formação de público e garantia dos direitos culturais”.
Ao apreciar alguns dos poemas enviados pela autora, imaginei que criações se deram após mergulhos profundos no seu ser enquanto mulher em meio a dúvidas, autoconhecimento. Mas não foi bem por aí. Apesar de ser constantemente questionada sobre esse “ser mulher” na obra ela prefere não colocar nestes termos. Beatriz tem refletido sobre quais são os desdobramentos disso para ela como artista e como sujeito.
“Não é estranho que o título contenha a palavra ‘mulher’ e de prontidão eu me levante contra ela? O que isso significa? Acaba sendo mais do que uma simples palavra ou materialidade, mas todo um conceito, um universo de ideias traduzido em poucos caracteres. Divagações à parte, hoje direi que não se trata de um mergulho no ser mulher, mas fica em aberto se essa resposta mudará daqui algumas horas, dias, meses ou anos. No momento, entendo a obra como a voz dos corpos dissidentes, daqueles que estão à margem, dos corpos encostados no canto das paredes das festas, sozinhos, mãos nervosas. É um mergulho no desencaixe, na angústia de estar fora da roda, a solidão dos que passam as madrugadas com as luzes acesas”.
Para a autora, seus poemas podem ser reflexões de mulheres, de homens, de nenhum-dos-dois, de pessoas que recusam essas categorias. “ ‘A Mulher Grande’ é para ser lido ser lida, sentida, identificada e ressignificada pelas gentes todas”.
SERVIÇO
“A Mulher Grande” (Ed. Urutau, 54 páginas, R$ 40). Disponível aqui.