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Grupontapé: a arte que transforma cada novo desafio com sensibilidade e perseverança

Ao atravessar uma porta, encontram-se possibilidades infinitas, novos mundos a serem descobertos, velhos mundos a serem redescobertos. O Grupontapé de Teatro abriu as suas portas para o Uberground, a poucos dias da estreia do espetáculo “As Centenárias” – aquele que deveria ter sido, mas acabou não sendo, e agora é! No dia da entrevista, o espaço na Rua Tupaciguara celebrava a instalação do tão aguardado climatizador, um ganho para o público e para os artistas. Nos bastidores, ainda estavam finalizando os adereços para a estreia que a repórter presenciaria alguns dias depois.

Ao pedir licença para entrar nesse espaço sagrado, especialmente o palco, me deparo com um grupo que vive um momento de contradições, como eles mesmos mencionaram. São 30 anos de estrada, três décadas dedicadas ao teatro como ferramenta de transformação social. É, sem dúvida, um momento de celebração. Mas também um tempo de novos desafios e incertezas, os quais a classe artística dificilmente escapa. No entanto, essa turma é do tipo que sempre vê “o copo meio cheio” – prestes a ser derrubado, e os esforços para mantê-lo intacto são o combustível para fortalecer suas raízes e dar espaço ao florescimento de uma nova geração dentro do Grupontapé.

Nos sentamos em círculo, já no cenário de “As Centenárias”, no início da noite de uma quinta-feira de fevereiro. Percebemos ali que essas conversas cara a cara já não aconteciam há muito tempo entre artistas e entrevistadora. Esse foi nosso primeiro encontro pós-pandemia, esse momento pelo qual ambos sobrevivemos, mas que deixou marcas difíceis de curar, ao mesmo tempo em que trouxe uma certeza: ninguém faz nada sozinho.

O Grupontapé de Uberlândia acompanhou a evolução e os altos e baixos da cena teatral da cidade mineira. “As Centenárias” entra no repertório do grupo como um divisor de águas, como explica a atriz Kátia Lou:

É importante porque é um espetáculo que queríamos no repertório, mas não estávamos preparados, no sentido da produção. Foi um projeto realizado sem um planejamento financeiro, feito mais pelo desejo de fazer teatro, que é o que nos mantém aqui há 30 anos.

Quando conversaram com Cris Lozano, as atrizes Kátia Lou e Kátia Bizinotto queriam um texto para a dupla, para duas mulheres, que falasse de amizade. Esse foi o ponto de partida; o tema das carpideiras veio depois.

“Encontramos nesse texto de Newton Moreno algo que dialogava com o que queríamos”, diz Kátia Lou. Elas já haviam assistido a uma montagem com Andréa Beltrão e Marieta Severo, dirigida por Aderbal Freire Filho. O texto era ótimo, mas não seria possível realizá-lo naquele momento porque exigia uma terceira presença no palco, representada por bonecos na montagem de Freire Filho.

“Isso nos limitou na época, queríamos uma terceira pessoa em cena”, explica Lou.

Mas o tempo, como sempre, é o mestre. E Cris Lozano continuava a selecionar textos para as Kátias, pensando no projeto de pesquisa 2K – A Investigação do Feminino. Kátia Bizinotto comenta:

Essa é a primeira estreia do grupo depois da pandemia, e todos passamos por esse momento de angústia geral. A classe artística ainda sente as consequências desse período. Por isso, uma comédia seria o ideal depois de ‘Tempo de Águas’, que tinha uma pegada mais pesada. Eu falei com eles: ‘Vamos fazer uma comédia, pelo amor de Deus!

As carpideiras, mulheres contratadas para chorar em velórios, seriam o tema de uma comédia? Além disso, é uma profissão quase extinta no Brasil, sobrevivendo em poucas regiões, segundo pesquisa do grupo. “Chegamos a ir para as ruas e perguntamos se as pessoas conheciam as carpideiras, e muitos confundiam com o ato de carpir a terra”, conta o coordenador de produção do grupo, Rubem dos Reis.

“Mas, ao mesmo tempo, sempre havia uma pessoa que conhecia outra que gostava de ir a velórios para… chorar, assim como conhecemos pessoas que vão a casamentos pelo mesmo motivo. Ou seja, a profissão pode estar quase extinta, mas o fenômeno está presente na sociedade. Tudo é uma questão de emoção”, diz Bizinotto.

E como foi esperado esse reencontro com a plateia, ao vivo, sem a mediação das telas, que de certa forma se tornaram a única forma de interação no período da pandemia. “A internet trouxe muitas oportunidades de fruição cultural para dentro das casas. Creio que muita gente se tornou mais reclusa, e agora começam a voltar à convivência social”, afirma Kátia Lou.

2K + 1

Ben Grassi, Kátia Bizinotto, Gabriel Parente, Kátia Lou, Vanilton Lakka e Rubem dos Reis após a entrevista para o Uberground (Adreana Oliveira)

Se há uma certeza na vida, é que a morte chegará. Mas como levar isso para o teatro de forma leve? O Grupontapé retomou, depois de várias leituras, o texto de Newton Moreno, dedicado à mãe do autor – e a razão você descobrirá ao assistir à peça.

“As Centenárias” é a história de duas carpideiras que lidam com o tema da morte, mas é um espetáculo mais amplo. Tudo gira em torno da amizade entre as duas mulheres (Socorro e Zeninha, interpretadas por Bizzinoto e Lou, respectivamente), e isso é algo que o grupo vive. São 30 anos de história, com duas cofundadoras chamadas Kátia, que fazem aniversário no mesmo dia.

“Às vezes temos a impressão de que, assim como as carpideiras, ‘as Kátias’ estão se extinguindo. Esse tipo de amizade está se tornando cada vez mais raro”, comenta Ruben.

A chegada do ator Rafael Patente ao grupo, em 2023, foi determinante para a montagem. Ele é o responsável por viver diversos personagens ao longo da trama, contracenando com Lou e Bizzinoto.

“Essa peça é cheia de personagens, e na montagem que vimos, esses papéis eram representados por bonecos. Agora temos o Rafael, que dá vida a cada um deles com maestria. Isso é um grande diferencial para nossa montagem”, diz Bizzinoto.

Este é o primeiro trabalho de Rafael Patente com o Grupontapé, onde teve a oportunidade de trabalhar em outras funções, mas essa peça marca sua estreia. “Já conhecia e acompanhava o grupo. Fiz faculdade com a Kátia Lou e agora, contracenando com ela e com a Bizinotto, a troca é positiva. Elas têm uma história de 30 anos, e eu, contando a faculdade, estou há 15 no teatro. É interessante confrontar ideias de diferentes gerações, é uma troca de experiências valiosas”, diz o ator.

Para Rubem, Kátia Bizinotto e Kátia Lou, a velha guarda do Grupontapé, eles se reconfiguram como uma equipe. Além de Gabriel, se juntaram ao grupo Ben Grassi e as atrizes Lara e Duda. E era o momento certo para tirar “As Centenárias” dos planos e torná-la realidade.

‘Trenzin arretado’

Newton Moreno é pernambucano, e “As Centenárias” é permeado pela cultura popular nordestina. Para o Grupontapé, o autor deu a liberdade de adaptar o texto para refletir mais a forma de “prosear” mineiro, sem perder a essência. Rubem explica:

Algumas frases do texto parecem o título de uma tese de doutorado, mas trazem a simplicidade da cultura popular, que toca profundamente as pessoas. É muito conteúdo para absorver.

A montagem foi ganhando forma, e com a diretora Cris Lozano mais próxima, as coisas começaram a entrar nos trilhos. Esse ‘trenzin arretado’ ia mesmo deixar a estação! Mas não como um espetáculo nordestino ou mineiro, mas como um espetáculo popular brasileiro.

O grupo contou com parceiros essenciais na criação do espetáculo. O conceito do cenário e iluminação, de Marisa Bentivegna, ganhou vida pelas mãos da artista Preta em Flor e do grafiteiro Dequete. Fernando Neves trouxe sua visão do circo-teatro, Babaya ficou com a preparação vocal dos artistas, e o figurino ficou a cargo de Flávio Arciole, tenor, carnavalesco, um ícone da cultura local. A trilha sonora é de Makely K e Morris Picciotto, enquanto o professor e coreógrafo Vanilton Lakka foi responsável pela preparação corporal.

Lakka, um dos últimos a embarcar, ficou encarregado dos momentos em que o corpo fala e explicou o principal desafio dessa empreitada fora da dança em si: a relação com o tempo.

“O corpo depende de condicionamento, e o teatro é uma história nova, no sentido da exposição corporal. Eu precisava perceber o histórico de cada ator e atriz para dar suporte ao que a montagem pedia”, explicou Lakka.

Ele e o Grupontapé são amigos de longa data. “Foi ótimo estar aqui, nesse espaço, ao lado da Cris, vivenciando a energia da cena. Sei o quanto é difícil viver da arte, e o Grupontapé é um símbolo de resistência no cenário de Uberlândia”, elogiou o preparador corporal.

Protagonismo em todos os campos

Arte de Dequete no cenário de “As Centenárias (Foto: Wladimir Raeder)

A trilha sonora é um dos pontos destacados por todos no Grupontapé em “As Centenárias”, não apenas pela música, mas também pela sonoplastia envolvida na produção. Por isso, Ben Grassi, que trabalhou na parte técnica e acompanhou todos os ensaios, foi a escolha ideal para cuidar desse aspecto.

“Temos entradas muito precisas no espetáculo, e me sinto preparado para essa função porque acompanhei o trabalho do Morris muito de perto”, disse Ben.

Kátia Lou destaca o prazer de trabalhar em grupo novamente, porque não é só quem está no palco que faz a roda girar. “São vários olhares que contribuem de diferentes maneiras. Todos são protagonistas”, afirmou.

Ruben menciona a rapidez com que Dequete trouxe a sua visão da imagem enviada por Marisa:

Pensei que ele fosse precisar de um dia ou dois, mas ele chegou com a imagem no celular, eu sai por um tempo e, quando voltei, a arte estava pronta. Foi impressionante.

Uma celebração à vida

Rubem, Gabriel, Ben, Kátia Bizinotto, Vanilton Lakka e Kátia Lou (Adreana Oliveira)

O Grupontapé pretende, com esse novo espetáculo, proporcionar uma experiência diferente para o público, desde a montagem do espaço até o momento final, com as luzes apagadas. O texto trata da morte, mas também é uma celebração da vida, da amizade entre duas mulheres que se completam, amigas-irmãs, convidando o público a uma imersão de sentimentos variados e contrastantes. É um texto com muitas camadas.

“As Centenárias” chega depois de “#Preciosas”, que foi a grande aposta do grupo, mas se perdeu em um momento difícil e após “Tempo de Águas”, um drama pré-pandemia, e a versão para a internet de “Questão de Hábito”. Ao mesmo tempo, o Grupontapé conta com quatro novos integrantes: Gabriel, Ben, Lara e Duda, a nova geração do grupo. Juntos, estão levando para empresas a citada “Questão de Hábito”, o primeiro espetáculo de repertório do Grupontapé, estreado há 30 anos e já visto por mais de 1 milhão de pessoas. O teatro corporativo, ou teatro aplicado, é uma das formas de manter o grupo em circulação.

Duda e Lara vivem os papéis que foram das Kátias na primeira versão. “Contamos com pessoas generosas na realização desse novo espetáculo. É conflitante porque, apesar de nossa trajetória de 30 anos, ainda existe uma fragilidade financeira, o que não nos impede de evoluir. É um reflexo do mundo e do país”, diz Rubem.

O Grupontapé vislumbra em breve retomar suas atividades formativas no próprio espaço, após adequações. Eles também seguem com seminários, como o da Economia da Cultura, pois a formação de público ainda é um grande desafio.

“Mais da metade do nosso tempo fora da sede é dedicado a atividades formativas. Kátia Bizzinoto tem três projetos voltados para professores, jovens, escolas e a área de direito cultural. Temos muito a desbravar, porque a arte tem um papel social fundamental: entreter, emocionar e questionar sempre”, conclui Rubem.

Kátia Bizinotto convida o público para assistir “As Centenárias”, que já estreou com ingressos esgotados nos dias 14, 15, 16, 21, 22 e 23 de fevereiro. Com patrocínio da Cemig, por meio de incentivo do Governo de Minas Gerais, essa primeira temporada tem entrada gratuita mediante retirada do ingresso, e marca o começo de mais um capítulo na história do grupo. “Confiamos que Uberlândia tem um público ávido por teatro, sabemos das grandes produções no Teatro Municipal e contribuímos para o cenário com esse espaço mais intimista, pronto para receber todos vocês.”

Depois da temporada em Uberlândia é possível que o espetáculo ganhe a estrada e leve esse espetáculo mais longe.

Kátia Lou reforça a missão do grupo: o desenvolvimento humano por meio do teatro. Para isso, realizam ensaios abertos, bate-papos com profissionais da classe e discutem os bastidores do espetáculo, a parte técnica e artística, como uma forma de fortalecer o setor.

“Já nos apresentamos para 450 pessoas que nunca haviam assistido a uma peça e muitos disseram: ‘Se soubesse que era assim, teria ido antes’. Esse tipo de recompensa é o que mais nos alegra, porque sabemos que o teatro tem o poder de reflexão e sensibilidade.”

QUEM FAZ O ESPETÁCULO ACONTECER

TEXTO: Newton Moreno | ADAPTAÇÃO: Cris Lozano e Grupontapé | DIREÇÃO: Cris Lozano | ELENCO: Kátia Bizinotto, Katia Lou e Rafael Patente | GRAFITE E CENOGRAFIA: Dequete e Preta em Flor | PREPARAÇÃO DE ELENCO: Babaya Morais (voz), Vanilton Lakka (corpo), Fernando Neves (circo-teatro) | CENOGRAFIA E DESENHO DE LUZ: Marisa Bentivegna | FIGURINOS E ADEREÇOS: Flávio Arciole | TRILHA SONORA: Makely Ka e Morris Picciotto | REALIZAÇÃO: Grupontapé, A Liberdade Mora em Minas e Governo de Minas Gerais

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